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19 de Abril de 2024

Regulação das criptomoedas pelo Congresso: como o projeto de lei a ser aprovado responde a desafios atuais?

Em um cenário volátil, no qual a bitcoin, principal criptomoeda, perdeu 60% de seu valor desde o início do ano, várias notícias apresentam questões que deverão ser incorporadas no debate regulatório atual ou futuro, quando a lei for regulamentada

Publicado por Grupo Bettencourt
há 2 anos


Guilherme Forma Klafke

Propostas de regulação do mercado de criptomoedas avançaram no Congresso Nacional no último ano. Em maio de 2022, o Senado Federal aprovou o substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.401/2021, originário da Câmara dos Deputados (PL nº 2.303/15), que procurou conciliar normas de vários projetos em um só documento. O texto foi devolvido para a Câmara, que incluiu o projeto na pauta para votação no plenário – até o momento em que este texto foi escrito, a matéria não havia sido apreciada. A perspectiva é de que o Brasil tenha uma lei para os criptoativos ainda neste ano.

Assim como acontece na discussão do PL nº 21-A/2020 (Marco Legal de Inteligência Artificial), a opção do Congresso Nacional para regular as criptomoedas parece se voltar para a fixação de diretrizes a serem seguidas por órgãos reguladores. A elas se somam algumas alterações na legislação penal para coibição de excessos que coloquem em risco bens jurídicos como economia popular e o bem-estar dos investidores e consumidores. O foco parece recair em um segmento específico do mercado de criptomoedas: as negociações intermediadas por agentes de mercado (as exchanges).

Em um cenário volátil, no qual a bitcoin, principal criptomoeda, perdeu 60% de seu valor desde o início do ano, várias notícias apresentam questões que deverão ser incorporadas no debate regulatório atual ou futuro, quando a lei for regulamentada. Indico abaixo cinco pontos que merecem consideração.

1º ponto: o risco de vazios ou choques regulatórios

O projeto de lei deixa claro que a regulação será setorial. O artigo 6º prevê que “ato do Poder Executivo atribuirá a um ou mais órgãos ou entidades da Administração Pública federal a disciplina do funcionamento e a supervisão da prestadora de serviços de ativos virtuais”.

A abordagem faz sentido, na medida em que o amplo conceito de ativos digitais abrange desde a representação eletrônica de unidades de valor que podem ser usadas como meio de trocas (à semelhança de moedas) até a representação de direitos sobre propriedade, atraindo a atuação regulatória de órgãos tão diferentes como Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários, Receita Federal, Tribunais de Justiça, dentre outros.

No entanto, essa atribuição de poderes deverá ser feita com muito cuidado para não criar vazios regulatórios e para conciliar sobreposições. Para exemplificar, o jogo Axie Infinity, que premia seus jogadores com criptomoedas, foi atacado por hackers em março de 2022. Os jogadores perderam aproximadamente 625 milhões de dólares. Notícias dão conta de que jogos do tipo play-to-earn (jogue para ganhar) estão se tornando fonte de renda de brasileiros – inclusive o próprio Axie Infinity. Órgãos de defesa do consumidor e o Poder Judiciário deverão ser provocados em casos de perda desse tipo.

2º ponto: patrimônio das exchanges

Na maior parte das intermediadoras, as criptomoedas são mantidas em contas da própria exchange, que fica responsável por realizar as operações em nome e por conta dos investidores. Recentemente a exchange Coinbase publicou em seu relatório fiscal que, em caso de falência, as criptomoedas sob sua custódia poderiam ser bloqueadas para pagamento de credores – tornando os investidores também credores da empresa. A indicação causou inquietação porque mostrou a fragilidade da relação entre empresa e consumidores na custódia das moedas.

O art. 13 do projeto responde a esse problema prevendo a segregação patrimonial dos recursos financeiros dos investidores e das prestadoras de serviços no mercado de ativos virtuais, com o objetivo de proteger as aplicações das pessoas. Isso significa que as prestadoras de serviços virtuais devem manter registro do que é de seus consumidores, não podendo dar esses recursos em garantia para obrigações ou entregá-los em processo de falência ou recuperação judicial.

3º ponto: bloqueios de saques pelas exchanges

O declínio no valor das criptomoedas jogou luz sobre o poder das empresas de finanças descentralizadas de bloquear os saques de seus clientes. Na última semana, a Celsius Network congelou saques e transferências de criptomoedas para fazer frente ao movimento de desvalorização, mesma ação da Babel Finance e outras empresas, enquanto a Binance suspendeu os saques alegadamente por conta de problemas na relação com o Banco Central brasileiro. Em janeiro, a Crypto.com suspendeu saques para verificar atividades suspeitas na sua rede.

O mencionado art. 13 da lei aplica o Código de Defesa do Consumidor à relação e procura criar a separação de patrimônio como forma de impedir que investidores percam os criptoativos sob custódia das empresas, mas ele não abre espaço explicitamente para que as prestadoras de serviço apliquem mecanismos de segurança similares a circuit breakers. Parece haver uma grande diferença entre o bloqueio de saques por risco sistêmico do mercado e o bloqueio por problemas técnicos na prestação de serviços. Nada impediria essas empresas de serem responsabilizadas pela medida.

4º ponto: automatização das operações com criptoativos

O derretimento do conjunto de moedas TerraUSD (UST) e Luna levou consigo um valor de cerca de 60 bilhões de dólares em mercado de criptomoedas. O evento contribuiu para uma quebra na confiança dos investidores e acentuou a queda no valor das criptomoedas como um todo. A situação alertou o mundo cripto para o risco dos lastros baseados em operações algorítmicas.

Basicamente, o par de moedas Terra e Luna foi uma tentativa de manter uma moeda lastreada em dólar (stablecoin) por meio de complexas operações de controle de oferta e demanda para manutenção do preço dentro da margem fixada. Se a UST valesse mais do que 1 dólar, contratos eletrônicos favoreciam a troca de Luna para UST, colocando mais moeda em circulação e reduzindo seu preço; ao contrário, se ela valesse menos do que 1 dólar, os contratos favoreciam a operação inversa, aumentando a quantidade de Luna e reduzindo a quantidade de UST em circulação, aumentando o preço (veja uma explicação em How $60 Billion in Terra Coins Went Up in Algorithmic Smoke.

O sistema entrou em colapso depois que investidores começaram a converter seus UST em dinheiro, em razão de sinais de problemas da gestora. Dada a automatização das operações, o desequilíbrio com excesso de UST disponível rapidamente levou a um aumento exponencial na quantidade de Luna, evaporando o seu valor. O resultado foi a quebra das duas moedas.

O episódio mostra os riscos de contratos automáticos em cenários de volatilidade. Seria conveniente que a regulação levasse em consideração esse risco e estipulasse obrigações de criação de mecanismos de segurança para os desenvolvedores que pretendessem oferecer serviços do tipo a brasileiros. A execução automática dos contratos demonstra que, em situações excepcionais, os movimentos com recursos financeiros podem ser intensificados.

5º ponto: mecanismos de prevenção e responsabilização

Na linha do risco anterior, o projeto de lei atual carece de mecanismos específicos de prevenção e responsabilização por danos causados aos investidores e consumidores de serviços com ativos virtuais. As estratégias adotadas são, basicamente, a delegação desses mecanismos para as autoridades reguladoras, a previsão de práticas de governança como diretriz, e a aplicação de legislações já existentes (consumidor e penal, principalmente).

Indico algumas ideias que poderiam ser previstas na lei ou na regulação futura:

  • - Whitepapers. Uma das práticas de mercado é a publicação de textos que apresentam pressupostos técnicos, jurídicos e negociais das criptomoedas, os whitepapers. Eles procuram dar mais segurança aos investidores. O projeto de lei poderia trazer ao menos a exigência de que a oferta de qualquer serviço baseado em criptomoeda no Brasil tenha um documento desse tipo, inclusive normatizando uma estrutura mínima;
  • - Comunicação de incidentes e fatos relevantes. Tendo em vista o caráter emergente da tecnologia e o risco de vulnerabilidades que podem, em um momento, reduzir o patrimônio dos usuários, seria importante que as empresas que ofertam serviços com ativos digitais tivessem uma obrigação de comunicação de incidentes e fatos relevantes para a comunidade, assim como preveem a Lei Geral de Proteção de Dados para incidentes de segurança com dados pessoais (art. 48) e a Lei de Sociedade de Ações para as SAs (art. 157, § 4º, como um dos “deveres de informar”);
  • - Influenciadores. Tendo em vista que as criptomoedas têm seu valor atrelado basicamente ao quanto as pessoas estão dispostas a pagar por elas, o papel desempenhado por influenciadores e analistas em movimentos de compra e venda de ativos nesse segmento é ainda mais importante. Uma grande empresa de análise de investimentos, por exemplo, recomendou em sua publicidade moedas que chegaram a ser retiradas de circulação por conta dos riscos atrelados. A Corte Federal de Apelações do 11º Circuito dos EUA recentemente aceitou uma ação judicial contra promotores de uma criptomoeda por contribuírem para um esquema de pirâmide;
  • - Confisco de criptomoedas. Seria importante que a legislação trouxesse previsão específica para a destinação de criptomoedas apreendidas pelo Poder Público, provenientes de atividades ilícitas. Em 2021, no âmbito da operação contra o “Faraó das Bitcoins”, o Ministério Público Federal chegou a criar contas próprias em exchanges para manter as criptomoedas apreendidas. Vale lembrar que se a pessoa não fornece a chave privada às autoridades para movimentação das criptomoedas, transações serão impossíveis, e os recursos poderão não ser recuperados;
  • - Responsabilização dos desenvolvedores por danos coletivos. Ainda que o Código de Defesa do Consumidor preveja o defeito na prestação de serviços quando o fornecedor “não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar”, é importante mencionar que se aplica às criptomoedas a mesma preocupação constante na discussão do Marco Legal de Inteligência Artificial: qual o limite de responsabilização dos desenvolvedores de criptomoedas e contratos inteligentes por falhas no código? Em se tratando de mercado financeiro descentralizado, o risco pode ser até maior, uma vez que os problemas com uma moeda podem afetar as demais, colocando à prova todo o sistema. O maior exemplo de código defeituoso aconteceu com a aplicação The DAO, em 2016, que possibilitou o desvio do equivalente a 70 milhões de dólares à época.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do (s) autor (es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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O Bitcoin foi criado por uma pessoa desconhecida como uma alternativa às moedas governamentais. Ele simplesmente não pode ser regulado pois a blockchain na qual transita não está em país algum e ao mesmo tempo está em qualquer país. Aliás, existe até um 'node' do Bitcoin rodando num satélite no espaço!

Trocar Bitcoins não depende de corretoras, muito menos de governos. Comprar e vender coisas usando Bitcoin não são rastreáveis quando as pessoas usam suas chaves privadas. Verdade que os governos, como sempre, querem regulamentar, taxar, cobrar impostos sobre qualquer atividade. Com o Bitcoin, podem seguir tentando. Quem conhece sabe que é impossível. E esse é o medo dos governos: como não existe forma de saber as transações, não haverá cobrança de impostos e os governos tenderão a morrer de inanição.

Todas as outras criptomoedas são outra coisa e os governos poderão usar a força para ameaçar seus desenvolvedores e poderão eventualmente regular, taxar, cobrar impostos etc.

Os próximos anos serão interessantes. continuar lendo

Prezado, dois detalhes apenas:

1- O Bitcoin foi iniciado e desenvolvido por um movimento Cypherpunk, portanto não é possível afirmar que foi criado por uma pessoa (Satoshi Nakamoto), um pseudônimo.
2- Todas as transações na Blockchain são públicas, rastreáveis e auditáveis, diferentemente do sistema bancário atual. Tudo isso pode ser confirmado na publicação do white paper do Bitcoin.

O medo do governo é perder o monopólio estatal da moeda. O Bitcoin tem lastro definido, 21 milhões de moedas que serão mineradas até o ano de 2140, por isso é deflacionário. Como Governantes controlam o a inflação gerando aumento da base monetária, impressão desordenada de moedas, perderão esse poder, aí sim morrerão por inanição! Para acabar com o Bitcoin somente uma intervenção Estatal, coisa que não acredito, ou desligando à Internet no Mundo todo, nesse caso nenhum outro sistema funcionaria. continuar lendo

Quem lançou o bitcoin e com que lastro, permissão, autorização ou prerrogativa legal?
Acho essencial esclarecer estes dados à população a fim de que as pessoas possam entender melhor como foi que surgiram as primeiras criptomoedas e se certificar se são realmente moedas legítimas e confiáveis. continuar lendo

Bitcóio, creptomoedas rs continuar lendo

O Bitcoin é jusnaturalista nato. É como perguntar: quem autorizou o sol a brilhar? cadê o carimbo?? kkkkk continuar lendo

Quanto as salvaguardas dos investidores o PL. parece bom, espero que se tenha contado com pessoas que conhecem o funcionamento deste Mercado, a questão agora, seria rever a IN RFB 1888/19 no que se refer as obrigações tributárias secundárias, é muita regra para muito pouca possibilidade de sonegação; a Suíça, dá um bom exemplo do que se fazer. continuar lendo

Se foram criadas como alternativa ao mercado financeiro oficial, as criptomoedas seriam marginais e, portanto, mais uma modalidade de "pirâmide financeira", virtual e sem lastro, ou seja, um paraíso para os golpistas. continuar lendo